sábado, 21 de março de 2020

UM GIRO PELA CIDADE


Já faz algum tempo que deixo meu carro na garagem e caminho pela cidade observando o comportamento humano. Em um domingo desço pela rua de minha morada, uma servidão tranquila e que um dia foi Condomínio de uma única família, e desbravo um cantinho da cidade que escolhi para um tempo. Essa tal ruazinha de que falo, e habito, e que construí meu castelo, é estreita, mas está bem calçada, iluminada com o amarelado tristonho de luzes antigas; algumas portas e janelas próximas a calçada, como em Azenhas do Mar, em Portugal ou Albarracín na Espanha.

Dessas belas recordações de viagem às tristes memórias de certos momentos, a reflexão leva-me à um dia de domingo e relembro que, já passado alguns meses, quando descia pelo mesmo caminho que habituei-me a fazer desde quando resolvi, neste recando, resguardar-me um pouco mais, como a um ermitão, da vida atribulada que tive, deparei-me com um gemido:

-----“Vou morrer!"

-----“Mulher, eu vou morrer?”

Todos iremos morrer..., hoje, amanhã, todos os dias, um dia...

Entristeceu-me àquele lamento de uma pessoa que conheci, mesmo que eventualmente; a voz deixou transparecer não só medo, mas dor e uma certeza escondida na aflição que deve anteceder aos desenlaces humanos.

Toda vez que passo em frente àquela casinha elevo meu pensamento a Deus e faço uma oração por àquela alma.

Os acontecimentos são um turbilhão em meus pensamentos e caminhar pela cidade faz-me pensar sobre cada passo dado, sobre cada espaço em que me extasio ou me entristeço, sobre cada pessoa anônima que vejo.

Aqui e acolá grupos de pessoas sorriem, conversam; alguns cabisbaixos, outros em passos acelerados e àqueles que estão jogando conversa fora e chutando algumas pedras pelos seus caminhos.

Bares; muitos bares, afinal é uma cidade turística e, parece-me, que o único cantinho que sobrou com absoluto silencio é onde volto depois para descansar: O meu castelo, a minha servidão, o meu lar.

Um bar chama minha atenção com mais ou menos 20 pessoas, todos jovens; mais outro bar e mais outro. Estou próximo à universidade e mesmo aos domingos os jovens ali se reúnem.

Um outro recanto de encontros faz meu olhar observar que não somente o calor faz com que as pessoas bebam muito; é o vício, o costume, os encontros entre amigos ou namorados. A bebida é o que permeia todas as mesas e em cada mesa muitas ilusões. São tais ilusões que observo no homem; este ser ereto que equilibra-se em um mundo de exibições. Sozinho, angustia-se; em multidões nunca consegue expressar Alteridade.

Nesse viés seguimos fazendo o mundo e, ao mesmo tempo, nós fazendo no mundo! Uma pergunta, porém, inquieta-me: Que mundo? Que mundo estamos fazendo? Estamos fazendo ou destruindo o mundo já existente?

Enquanto o homem continuar acreditando na sua supremacia e na possibilidade infindável das suas descobertas, sem dar-se conta de reconhecer sua ignorância, finitude e a finitude do próprio mundo, caminhará para antecipar sua própria destruição.

Este homem petulante que se acredita poderoso, empunhando a ciência como um trunfo do seu poderio, nunca observando o que transcende ao mundo e ao seu próprio mundo, morrerá sem saber e sem percorrer o seu infinito.

Observo também que tal poder se desfaz quando tragédias apontam ao homem sua inércia e impotência; então de poderoso torna-se religioso e clama por Deus em orações.

À minha frente uma igreja; sim, em tais andanças também encontro e encontrei muitas igrejas e sem nenhuma curiosidade, como àquelas do tempo de menino, eu perpasso a grande porta de madeira nobre; verniz escuro, torneada com desenhos abstratos em trabalho perfeito do Artífice. Agora não é curiosidade como o menino de um dia; observar tais entalhes é extasiar-se com a arte e reconhecer que a mão do homem quando faz coisas belas tem um aporte divino.

Uma outra arte, a do sermão, ou do discurso, é tarefa de um Padre, quem sabe Dominicano ou seria Jesuíta? Ou Franciscano? A arte de um sermão informa, encanta, orienta e apazigua nossa alma; seja de qual ordem for, o Padre que tem o dom e a arte de falar deixa-nos bastante atentos à seu sermão, quiça como fazia o Padre António Vieira, que hoje se lê com emoção: “Primeiramente, digo que temos hoje nascido de Maria a Cristo, Senhor nosso, não como nasceu há três dias, mas com outro nascimento novo. E que novo nascimento é este? É o nascimento com que nasceu da mesma Mãe daqui a trinta e três anos, não em Belém, senão em Jerusalém. Isto é o que diz o nosso texto, e provo: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus: Maria da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo. - Cristo quer dizer ungido, Jesus quer dizer salvador. E quando foi Cristo salvador, e quando foi ungido? Foi ungido na Encarnação e foi salvador na cruz. Foi ungido na Encarnação quando, unindo Deus a si a humanidade de Cristo, a exaltou sobre todas as criaturas, como diz Davi: Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae, prae consortibus tuis. - E foi salvador na cruz, quando por meio da morte, e pelo preço de seu sangue, salvou o gênero humano, como diz S. Paulo. Factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi nomen, quod est super omne nomen, ut in nomine Jesu omne genu flectatur. - Logo, quando Cristo, Senhor nosso, nasceu em Belém, propriamente nasceu Cristo, mas não nasceu Jesus, nem salvador: nasceu Cristo, porque já estava ungido pela união hipostática com que a Pessoa do Verbo se uniu à humanidade; e não nasceu Jesus nem salvador, porque ainda não tinha remido o mundo, nem o havia de remir e salvar, senão em Jerusalém, daí a trinta e três anos.” (Sermão XIV (1633) - Edição de Referência: Sermões. Vol. V Erechim: EDELBRA, 1998).

Andanças, quem sabe seja este o título adequado para escrever sobre minhas caminhadas que geram reflexões, encontros, sonhos, textos e a certeza, em oposição a Sartre, de que não estamos sós no mundo!

“Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20)

Continua...

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